Pensei em acreditar, com uma convicção cada vez maior, que o que me é mais importante deve ser dito, verbalizado e compartilhado, mesmo que eu corra o risco de ser magoada ou incompreendida. A fala me recompensa, para além de quaisquer outras consequências. (...)
Ao tomar uma obrigatória e fundamental consciência da minha imortalidade, e do que eu deseja e queria para a minha vida, por mais curta que ela pudesse ser, prioridades e omissões ganharam relevância sob uma luz impiedosa, e o que mais me trouxe arrependimento foram os meus silêncios. Do que é que eu tinha medo? Eu temia que questionar ou me manifestar de acordo com as minhas crenças resultasse em dor ou morte. Mas todas somos feridas de tantas maneiras, o tempo todo, e a dor se modifica ou passa. A morte, por outro lado, é o silêncio definitivo. E ela pode estar se aproximando rapidamente, agora, sem considerar se eu falei tudo o que precisava, ou se me traí em pequenos silêncios enquanto planejava falar um dia, ou enquanto esperava pelas palavras de outra pessoa. E comecei a reconhecer dentro de mim um poder cuja fonte é a compreensão de que, por mais desejável que seja não ter medo, aprender a vê-lo de maneira objetiva me deu uma força enorme.
E ia morrer, mais cedo ou mais tarde, tendo ou não me manifestado. Meus silêncios não me protegeram. Seu silêncio não vai proteger você. Mas a cada palavra dita, a cada tentativa que fiz de falar as verdades das quais ainda estou em busca, tive contato com outras mulheres enquanto analisávamos as palavras adequadas a um mundo no qual todas nós acreditávamos, superando nossas diferenças. E foi a preocupação e o cuidado dessas mulheres que me deram força e me permitiram esmiuçar aspectos essenciais da minha vida.
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Quais são as palavras que você ainda não tem? O que você precisa dizer? Quais são as tiranias que você engole dia após dia e tenta tomar para si, até adoecer e morrer por causa delas, ainda em silêncio? (...)
E é claro que tenho medo, porque a transformação do silêncio em linguagem e ação é um ato de revelação individual, algo que parece estar sempre carregado de perigo. Mas minha filha, quando contei para ela qual era o nosso tema e falei da minha dificuldade com ele, me respondeu: “Fale para elas sobre como você jamais é realmente inteira se mantiver o silêncio, porque sempre há aquele pedacinho dentro de você que quer ser posto para fora, e quanto mais você o ignora, mais ele se irrita e enlouquece, e se você não desembuchar, um dia ele se revolta e dá um soco na sua cara, por dentro.”
Em nome do silêncio, cada uma de nós evoca a expressão de seu próprio medo - o medo do desprezo, da censura ou de algum julgamento, do reconhecimento, do desafio, da aniquilação. Mas acima de tudo, penso que temos a visibilidade em a qual não vivemos verdadeiramente. Neste país, onde diferenças raciais criam uma constante, ainda que velada, distorção de visões, as mulheres negras, por um lado, sempre foram altamente visíveis, assim como, por outro lado, foram invisibilizadas pela despersonalização do racismo. Mesmo dentro do movimento social das mulheres, nós tivemos que lutar e ainda lutamos, por essa visibilidade, que é também o que nos torna mais vulneráveis - a nossa negritude. Para sobrevivermos na boca desse dragão que chamamos de américa, tivemos de aprender esta primeira lição, a mais vital: que a nossa sobrevivência nunca fez parte dos planos.
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Cada uma de nós está aqui hoje porque, de uma forma ou de outra, compartilhamos de um compromisso com a linguagem, com o poder da linguagem e com o ato de ressignificar essa linguagem que foi criada para operar contra nós. Na transformação do silêncio em linguagem e ação, é essencial que cada uma de nós estabeleça ou analise seu papel nessa transformação e reconheça que seu papel é vital nesse processo.
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E nunca é sem medo - da visibilidade, da crua luz do escrutínio e talvez do julgamento, da dor, da morte. Mas já passamos por tudo isso, em silêncio, exceto pela morte. E o tempo todo eu me lembro disto: se eu tivesse nascido muda, ou feito um voto de silêncio durante a vida toda em nome da minha segurança, eu ainda sofreria, ainda morreria. Isso é muito bom para colocar as coisas em perspectiva.
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Podemos aprender a agir e a falar quando temos medo da mesma maneira como aprendemos a agir e a falar quando estamos cansadas. Fomos socializadas a respeitar mais o medo do que nossas necessidades de linguagem e significação, e enquanto esperamos em silêncio pelo luxo supremo do destemor, o peso desse silêncio nos sufocará.
O fato de estarmos aqui e de eu falar essas palavras é uma tentativa de quebrar o silêncio e de atenuar algumas das diferenças entre nós, pois não são elas que nos imobilizam, mas sim o silêncio.
E há muitos silêncios a serem quebrados.
Fragmento de LORDE, Audre. A transformação do silêncio em linguagem e ação. In.: Irmã outsider. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, p. 51-56.
Tenho 14 anos de experiência no desenvolvimento humano. Sou graduada em Psicologia pela UFRJ, em Filosofia (UERJ) e especialista em Educação (UFF). Atendo pessoas a partir de 12 anos.
Atenção: Se você estiver em crise, com ideação ou planejamento suicida, ligue para o Centro de Valorização da Vida - CVV (188). Em caso de emergência, procure o hospital mais próximo. Havendo risco de morte, ligue imediatamente para o SAMU (192), ou para o Corpo de Bombeiros (193).
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